domingo, 22 de setembro de 2013

o espelho do mundo





um espelho costuma ter a capacidade de reflectir a luz e, igualmente, tudo que se apresenta na sua face. foi sempre assim: até nascer o josué.




face que a face revelas
nos dias com sol e com luz
mostras as caras do mundo
que sem mistério seduz
assim é o que sempre foi
o ver o que já lá está
aguardemos quem lá vem
o mundo verdadeiramente espelhar
vai nascer o josué
e o mundo vai mudar
a mãe do espelho


rainha e menina da aldeia
curiosa não havia igual
reinava nos sonhos do rio
crescia por fora
crescia por dentro
mas não crescia, enfim
vitória não sabia
que longe dos sonhos do rio
estava já perto do fim

vitória, com apenas treze anos de idade, tinha uma curiosidade enorme em fazer o que cresceu a ver na televisão: homens e mulheres enroscados, gemendo, rindo e que depois se vestiam. aos catorze, a menina percebeu que esquecera alguma coisa (que não via nos filmes) e pariu. tudo começou naquela tarde quente de verão quando decidiram dar uma escapadela ao riacho da aldeia para refrescarem todos, cerca de nove, a pele suada do jogo do “mata” e também a vontade, calada pelo que as pessoas que passavam na rua impunham, de descoberta.

no seu corpo começavam a desenhar-se formas: adivinhava-se, com timidez, a nítida diferença da cintura com a anca; as mamas (ainda em forma de concha) ameaçavam saltar e os humores sortidos, porém sem caprichos de mulher artista, já se faziam sentir desde que o seu primeiro sangue desceu aos onze anos -altura em que igualmente, e pela primeira vez, nadou no rio.

vitória detestava flores e árvores e ninguém percebia muito bem o porquê, até porque foi vezes sem conta apanhada sentada a comer terra, de este desprezo pela natureza viva. ao invés, deliciava-se – horas a fio – a olhar as pedras e a sobrepô-las até desabarem. certa vez enquanto se lambuzava com a terra do quintal, foi surpreendida por um sardão. destemida e determinada, fez questão de o esmagar: primeiro a cabeça, depois o resto e, por último, arrancou-lhe, para expor ao sol até ficarem tesos, os olhos.

as brincadeiras nas margens do rio aumentaram com a chegada da caravana dos ciganos à aldeia, assim como a sua curiosidade acerca de corpos nus em movimento. de tal forma que vitória esperava que os pais se deitassem para espreitar e esperar que se embrulhassem, despidos. foi nesta altura que conheceu o né e, depois de constatar que para ele isso não era novidade, planeou imitar as acrobacias que via na televisão e pelo buraco da fechadura.

 o pai do espelho


cheio de cor e de estofo
com mãos e olhos de fogo
levava a vida a brincar
saltando de terra em terra
saltando de menina em menina
não sabendo que nesta aldeia
o seu mundo vinha acabar


nesse verão quente chegaram à aldeia sete carroças ciganas para uma temporada de habilidades artísticas de canto e de dança. entre os mais jovens: aquele que viria a ser um dos criadores de josué (entenda-se criador involuntário e sem qualquer pretensão), o né das tochas por tão agilmente brincar com o fogo.

completara dezassete anos e fora a maior festa do inverno da última aldeia por onde as caravanas passaram. de olhos brilhantes e sorriso encoberto habituara-se, desde cedo, a seduzir as meninas das aldeias (que se encantavam com as suas habilidades) que sempre os acolhiam com entusiasmo e alegria. durante o tempo em que permaneciam nas aldeias, todas as noites, decoravam o largo das igrejas com fitas e flores; cada membro do grupo cantava ou dançava algo diferente a cada dia vestindo roupas retalhadas que a avó, a mais velha, fazia.

corpulento e desajeitado ensaiava durante a manhã para, durante a tarde, juntar-se às brincadeiras no rio. quando conheceu vitória percebeu o quanto ela gostava de ouvir as suas histórias que eram, na sua grande maioria, aumentadas  - quer na duração dos episódios, quer nos pormenores relatados. era o entusiasmo de ela que o fazia exagerar e, por essa razão, achava que aumentar histórias assim não era pecado: era rebuçado. por falar em rebuçado, as guloseimas eram a perdição do né. todos os dias teimava em saboreá-las até ficar com dor de barriga. certa vez comeu tantos rebuçados que lhe soltou o intestino e não pode brincar com o fogo no espectáculo da noite: serviu-lhe de lição - não fossem as tochas a sua vida, as meninas das suas mãos. descobriu, com vitória, que adorava que lhe mexessem na cabeça: ela catava-lhe as lêndeas e os piolhos, senhorios os seus cabelos baços e desgrenhados, e riam muito quando olhavam para o frasco de vidro para onde os sacudiam. até encher, diziam.

não lhe era indiferente a quentura das mamas de vitória a desabrochar nas suas costas – cresceu a saber que quando se tem fome: come-se e quando se sente vontade: fode-se.


a criação do espelho

o fogo e o vento unidos
sem saberem bem porquê
brincaram um pouco
 juntos
com o rio
à sua mercê

como estava a dizer, naquela tarde juntaram-se todos para um banho no riacho e brincadeiras nas margens. desde o dia em que se viram pela primeira vez, vitória e né, sentiram permissão para se explorarem: enquanto ele relatava as passagens por outras aldeias, ela aproveitava para catá-lo das lêndeas e dos piolhos que faziam já parte da risota de ambos. decidiram, com os olhos - apenas com os olhos -, afastar-se dos outros e  atravessaram o riacho calcando as pedras, muito devagar, musguentas e brincalhonas que aguardavam impacientes um pequeno deslize para se poderem deslocar. era fascinante o poder que a água exercia em vitória: por breves instantes o mundo parava ali. fixava, séria e atenta, os olhos na água. seguiam-se as mãos e os pés. deliciava-se a ver o seu reflexo e dizia sempre que não era ela (o que deixava né confuso e atrapalhado e sem saber o que dizer). ocorria-lhe apenas chapinhá-la e meter lá a cabeça para depois poder sacudi-la e gozar com o afogamento dos seus inquilinos do quinto andar.

chegados à outra margem, vitória (que conhecia o rio como né conhecia o sabor dos rebuçados) assumiu a dianteira e dirigiu a caminhada para uma clareira onde achou que poderiam ficar longe de eventuais olhares curiosos e, desta feita, ensaiar o que viria a seguir. ali ficaram, horas a fio, a aguardar a escuridão da noite e a solidão do rio. Contou - sem pudor e com frenesim - as aventuras vadias em frente à televisão e de olho na fechadura da porta do quarto dos seus pais. né, apesar de atento e empolgado, não sabia bem do que falava aquela rapariga: televisão e portas eram palavras que não cabiam nas caravanas nem na sua vida sem paredes. ainda assim ouviu e imaginou e percebeu que a vontade chegava.

o que mais instigava a curiosidade de vitória eram os barulhos que dizia ouvir quando, escondida, apreciava as acrobacias. descreveu-os como estranhos e despropositados e, para né perceber bem o que queria dizer, comparou-os aos emitidos pelos macacos se aprendessem as vogais. né tinha apenas pensamentos mudos de quem nunca antes tinha parado para pensar nisso.
despiram-se.



vitória estava deliciada a olhar minuciosamente tudo no corpo de né que, por sua vez, comparava as formas de ela a frutos: as mamas lembravam-lhe pequenos pêssegos de bico arrebitado e escuro; o sexo – um figo aberto ainda por amadurecer. foi quando lhe ocorreu perguntar a idade daquele corpo: o mais jovem, e  ainda não sabia, o último, que provaria durante toda a sua curta vida.

os olhos da menina-água fugiram para o sexo, já erecto, do jovem cigano questionando-o se  seria aquela cobra, curta e grossa, a entrar nela. e ele ria, ria tanto que a bicha caía. depois vitória lá pedia para mexer, e ver o que se escondia por debaixo da densa penugem, e a bicha voltava a crescer. sussurrando, meia trémula, que estava a fazer-se tarde e que precisavam fazer o que os tinha levado até ali, vitória dirigiu-se para o rio onde, em passos lentos, entrou. seguiu-se o rapaz, excitado apenas pela excitação de ali estar e não, isso é certo, pelo cheiro e pelo (quase) sabor do cesto da fruta fresca.

estavam ambos nus, ambos na água que lhes cobria a cintura, quando, inesperada e docemente, vitória canta, ao mesmo tempo que né com brusquidão a penetra, assim:

reflexo meu
reflexo teu
 nananananana
onde queria eu chegar
e agora que aqui estou
vieste para me buscar
reflexo meu
reflexo teu
 nananananana

apenas uns instantes e né gemia, as vogais de macaco como dizia vitória, baixinho, baixinho e depois alto, alto até libertar um berro – que já não era de prazer – de aflição. o esperma que jorrava não era, como estava habituado, espesso e branco leitoso. era verde e em quantidade nunca antes percebida: o rio tinha-se transformado num prado a correr. vitória, que tinha fechado os olhos quando entraram no rio, com o susto do berro, que já não era de macaco mas antes de leão,  abriu os olhos e, igualmente assustada, correu para a margem puxando o ciganinho né pelo braço.

não conseguiram falar no rio verde mas prometeram, um ao outro, guardar o episódio com eles até morrerem e esquecerem o que tinham visto naquela noite em que a lua nem sequer estava cheia e manhosa.

no chão (ele) e na cama (ela): adormeceram.




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