domingo, 17 de abril de 2011

o funeral dos vivos mata

a morte é sempre um acontecimento grandioso para quem vai e para quem fica. quem vai, tem a oportunidade de morrenciar outras experiências: vai-se o corpo e fica-se a alma. em último caso, no caso de almas pequenitas, roubar passa a deixar de ser pecado porque a possibilidade de se ser apanhado deixa de existir. em outros casos, talvez amiúde, os mortos expostos em caixão aberto, tesos, vestidos literalmente para morrer com a roupa que lhes ficava a matar, adquirem a importância, a única - quem sabe -, de serem, por horas a fio, admirados e comentados e atencionados. arrisco dizer que morrer é subir ao palco da vida, da própria, e conseguir enfim, por fim, ouvir em primeira mão o que todos os que rodeiam pensam e dizem ou dizem o que não pensam. (é tudo à grande, tudo à grande)

para quem fica, para a grande maioria de quem fica, porque lamentavelmente as grandes fatias cabem sempre aos desvirtuados, a morte de alguém passa a ser o grande momento de glória - da Dra.Marta ou da Zefa, do Tono ou do Eng. Mascarenhas -: a de levarem a cabo todos os esforços para serem aplaudidos e ganharem, sebo nas mãos de tantos apertos, reconhecimento. e depois vem a parte em que a morte do morto vem relembrar a falta que fará a cada um e não a falta que fará enquanto gente. ou seja: a lengalenga do coitado, vai fazer-me tanta falta e agora quem me dará conselhos, quem me fará isto, quem me fará aquilo - é mesmo conversa típica dos vivos que passam a vida a encornar e, neste caso concreto, fazem do morto, à letra, o verdadeiro corno manso da vida. um morto que foi um verdadeiro vivo é um morto que merece a maior fidelidade do mundo: a fidelidade de continuar a ser, sem esforço, o amor, de corpo e alma, para a vida.

eu aviso, desde já, o mundo que quero uma festa quando morrer. podem chorar ou rir, como apetecer, a ouvir samba ou kizomba; e quero comida, muita comida da boa porque não serei, estou certa, uma morta de fome. e nada de caixões que dá-me os calores e passo-me: se querem adorar o meu corpo, embalsamem-me e pendurem-me e vistam-me o vestido mais cor-de-rosa e mais decotado que eu tiver. e as garras quero-as, como sempre, pintadas e brilhantes - as das mãos e as dos pés.

(em relação à alma, não se preocupem: só precisam de masturbação na morte as almas que foram murchas na vida)

2 comentários:

  1. E um velório? É cada tiro, cada melro por parte dos convivas...
    Gostei e subscrevo esta tua visão do ritual.

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  2. então, isto dá uma visão de mar e de ar.:-)

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